sábado, 27 de dezembro de 2014

CONVERSA ENTRE EXU E OXALÁ

O céu e a terra fundiam-se no horizonte distante, parecendo uma coisa só, como se não houvesse separação entre o mundo espiritual e o material, a consciência individual e a cósmica.
Sentado sobre uma pedra enorme na montanha, de cabeça baixa e olhos apenas entreabertos, Exu observava o fenômeno da natureza e refletia sobre o seu interminável trabalho.

- Como é difícil a humanidade – pensou em certo momento – parece nunca estar satisfeita, está sempre querendo mais e em sua essência egoísta desarmoniza tudo, tudo...Tudo que era pra ser tão simples acaba tão complicado.
Com os olhos habituados a enxergar na escuridão e na distância, Exu observou cada canto daqueles arredores.Viu pessoas destruindo a si mesmas através de vícios variados, viu maldades premeditadas e outras praticadas como se fossem atos da mais perfeita normalidade.Viu injustiças, principalmente contra os mais fracos e indefesos.Com seus ouvidos, também atentos a tudo, ouviu mentiras, palavras de maledicência, gritos de ódio e sussurros de traição.

Exu suspirou.

- Serei eu o diabo da humanidade? – pensou ironicamente, ao lembrar o quanto era associado à figura de demônio, passou horas observando coisas que estava habituado a ver todos os dias; mentiras, fraudes, corrupção, traições, inveja e uma gama enorme de sentimentos negativos.
Foi quando estava imerso nesses pensamentos que Exu ouviu uma voz ao seu lado, dizendo naquele tom austero, porém complacente:

-Laroyê, Senhor Falante.

Exu ergueu os olhos e vislumbrou a figura altiva de Oxalá.

-Epa Babá – respondeu Exu, fazendo um pequeno movimento com a cabeça, em sinal de respeito.

-Noto que está pensativo amigo exu – falou Oxalá.

Exu respirou fundo, contemplou novamente o horizonte e respondeu:

-Trabalhamos tanto...e incansavelmente, mas os homens parecem não valorizar nosso esforço.

Oxalá moveu os lábios para dizer algo, mas antes que isso acontecesse, Exu, como que prevendo o que seria dito, continuou:

-Não falo em tom de reclamação, sou um trabalhador incansável e o amigo sabe disso, é com prazer que levo o que tem que ser levado e retiro o que deve ser retirado, é com satisfação que abro ou fecho os caminhos, de acordo com a necessidade de cada um, é com resignação que acolho sobre minhas costas largas a culpa do mal que muitos espíritos encarnados e desencarnados fazem, para mim não existe frio ou calor, cansaço ou preguiça, existe apenas a necessidade de cumprir a tarefa para qual fui designado.

-Se mostra tão resignado e, no entanto, parece que deixa se abater pelo desânimo – comentou Oxalá, apoiando-se em seu paxorô.

Exu soltou uma gargalhada, ao que Oxalá deu um leve sorriso, com um movimento quase imperceptível no canto direito dos lábios.

-Não sou resignado nem tampouco estou desanimado – falou Exu – estou pensativo sobre pouca inteligência dos homens.Veja só: como responsável pela aplicação da Lei Carmica observo muita coisa.Observo não apenas o sofrimento que alguns homens impõem a si mesmos, mas vejo também as incessantes oportunidades que o Universo dá a cada um dos seres que habitam a Terra.O aprendizado que tanto precisam lhes é dada a oportunidade de aprender pela dor, mas geralmente só lembram a lição enquanto a dor está a alfinetar sua carne.Com o alívio vem o esquecimento e todos os erros e vícios voltam a aflorar.

Oxalá fez menção em dizer algo, mas com o dedo em riste entre os lábios, novamente Exu o impediu de falar.

-Ouça – disse Exu, colocando a mão em concha na orelha, como se ele e Oxalá precisassem disso para ouvir melhor.E ambos ouviram o som que vinha da Terra.O som da inveja, dos maus sentimentos, da maledicência, da promiscuidade, da ganância.Exu deu outra gargalhada e disse:

-Percebe?Temos trabalho por muitos séculos ainda.

-E isso não é bom?-perguntou Oxalá, que dessa vez não deixou Exu responder e continuou:

-Pobres homens, ignorantes da própria grandeza espiritual e da simplicidade do Universo, se não desconhecessem tanto o funcionamento das coisas, seriam mais felizes.

-Não estão preocupados em discernir o bem e o mal – resmungou Exu.

-E você está Senhor Falante? – tornou Oxalá.

Mais uma vez Exu gargalhou.

-Para mim não existe o bem ou o mal, existe o justo, bem sabe disso.

-Então por que tenta exigir esse discernimento dos pobres homens?

-Eu conheço os caminhos – respondeu Exu um tanto irritado – para mim não existe 
obstáculos, todos os caminhos se abrem em encruzilhadas, para mim as portas nunca se fecham e as correntes nunca prendem, conheço o sutil mistério que separar aquilo que chamam de bem daquilo que chamam de mal, não sou maniqueísta, não sou benevolente, pois não dou a quem não merece, mas também não sou cruel, pois sempre ajo dentro da lei.Os homens coitados, acreditam na visão simplista do bem e do mal, como se todo o Universo, em sua “complexa simplicidade” se resumisse apenas entre o bem e o mal.

-Pobres homens – repetiu Oxalá.

-Pobres homens – concordou Exu – mesmo olhando o Universo de uma forma tão simplista, dividido apenas entre bem e mal, acabam sempre demonizando tudo, achando que o mal é o melhor caminho para conseguir o que desejam ou então acreditam que são eternas vítimas do mal e o que é pior, quase sempre eu é que sou o culpado.

-Mas você é o responsável pelo mal? – perguntou Oxalá, admirando o horizonte.

-Sou justo, apenas isso – respondeu Exu.

-Não seria a justiça uma prerrogativa de Xangô? – tornou o maior dos Orixás.

Exu olhou no fundo dos olhos de Oxalá e respondeu:

-Estou a serviço do Universo, de cada uma das forças que o compõe, inclusive do Senhor da Justiça.

-Isso significa que trabalha em harmonia com o Universo caro Exu?

-Imaginei que soubesse disso – respondeu Exu, irônico como sempre.

-Acho que sempre soube, quando observo o horizonte e vejo o céu fundindo-se a Terra, percebo o quanto o material pode estar ligado ao espiritual, mas também lembro que o Sol vai raiar e acredito que apesar de todas as dificuldades que os próprios homens criam é possível acender a chama da Fé em seus corações, percebo o quanto eles são falhos, mas percebo também o quão são frágeis e precisam de nós – e nesse momento pousou a mão sobre o ombro de Exu – sejam dos que trabalham na luz ou na escuridão, pois tudo faz parte do Uno e se inter-relacionam, o mesmo homem que hoje estás nas profundezas mais abissais, amanhã pode ser o mensageiro da Luz.

Exu olhou para os olhos de Oxalá, como se não estivesse concordando, mas dessa vez foi Oxalá que não deixou que o outro falasse, prosseguindo com a sua narrativa:

-Se não fossem os valorosos guardiões que trabalham nas regiões trevosas, dificilmente os que ali sofrem um dia alcançariam o benefício da Luz, se houvesse apenas a Luz, não haveria o aprendizado, que tem como ponto de partida o desconhecimento, as trevas.O Universo tão simples é ao mesmo tempo tão inteligente, que mesmo nós, que observamos os homens a uma distância grande, às vezes nos surpreendemos com a sua magnitude.Os homens são frutos que precisam amadurecer e você, amigo Exu é a estufa que os aquece até o ponto certo da maturação e eu sou a mão que os colhe como frutos amadurecidos.

-Quem diria que trabalhamos em harmonia? – disse Exu em meio a um sorriso – acreditam que vivemos a digladiar quando na verdade trabalhamos em busca de um mesmo objetivo: o aprimorar da raça humana.

Oxalá só não soltou uma gargalhada porque não era esse o seu hábito, mas disse sem conseguir esconder o contentamento:

-Então companheiro Exu não temos porque lamentar.A ignorância em que vivem os homens é sinal de que ainda temos trabalho a realizar, a pouca sabedoria que possuem significa que ainda estão muito próximos ao ponto de partida e cabe a nós, não importa se chamados “direita” ou “esquerda”, auxiliá-los em sua caminhada, que é muito longa ainda.Apenas contemplar as mazelas dos corações humanos não irá auxiliá-los em nada.Sou a luz que guia os olhos da humanidade e você o movimento que não a deixa estática.Se pararmos por um segundo sequer, atrasaremos em séculos e séculos o progresso da raça humana, que tanto depende de nós.

Nesse momento o Sol começou a raiar timidamente no horizonte, separando o céu da Terra, Exu levantou-se da sua pedra e se pôs a caminhar montanha abaixo.

-Aonde vai, Senhor Falante? – perguntou Oxalá, como se não soubesse.

-Vou trabalhar Senhor dos Orixás – respondeu Exu gargalhando novamente – Esqueceu que sou um trabalhador incansável e que trabalho em harmonia com o Universo, mesmo que ele me imponha a luz do Sol?

Oxalá não respondeu, mas esboçou um sorriso tímido, assim trabalhava o Universo: Sempre em Harmonia, os homens, mesmo ainda presos a tantos conceitos primários, trilhavam os primeiros passos em direção ao progresso, pois não estavam órfãos de seus Orixás e protetores.

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